Me chamo Jéssica, tenho 17 anos. Sou uma pessoa muito feliz. Namoro o Thiago, o amor da minha vida. Sou alfabetizada e estou na sétima série. Falo inglês, sei um pouco de libras e francês. Navego na Internet. Sou recreadora de crianças. Faço e vendo bijuterias.
Sou muito independente, viajo sozinha, ando de ônibus urbano e vou ao banco. Sou muito amada pelos meus familiares e amigos. Tenho uma cachorra muito fofa, a "Pérola". Sou uma adolescente igual a qualquer menina de minha idade. Mas nem sempre minha vida foi assim.
Quando nasci, minha mãe percebeu que eu era diferente, embora ela falasse para os médicos, eles diziam que era da cabeça dela. Mesmo desacreditada minha mãe insistiu. Correu atrás de terapias e tratamento mesmo não sabendo o que eu tinha. Houve momentos que chamaram minha mãe de louca. Ela percebia que meu desenvolvimento era diferente, demorei em levantar a cabeça, sentar, andar, falar. Tive muitas infecções, era uma criança muito irritada, hiperativa.
Por ironia do destino, tive meningite bacteriana aos 16 meses, o que atrasou ainda mais o meu desenvolvimento, andei com quase 3 anos, sempre tive muitas dificuldades motoras. Passaram a tratar sequelas da Meningite, embora minha mãe nunca tenha concordado com este diagnóstico. Só descobriram o que eu tinha aos 7 anos, isto porque minha mãe encontrou com um médico americano no corredor de um hospital e ele disse que eu tinha Síndrome de Williams.
Minha família me levou a uma geneticista e lá foi diagnosticada a Síndrome de Williams. Uma síndrome genética em que falta um pedaço do cromossomo 7. Não tenho elastina, tenho muito cálcio no corpo, já operei duas vezes da estenose aórtica supravalvar, tenho problema na bexiga, dor de ouvido, muita dificuldade para amarrar cadarço, não sei o que é direita ou esquerda, sou muito ansiosa, uso óculos, usei aparelho no dente, porque meus dentes eram para fora. Se quiserem saber mais entrem e acessem:www.swbrasil.org.br.
Minha mãe me colocou na creche aos 4 meses, porque ela sempre trabalhou fora. No segundo dia chamaram a minha mãe para perguntar o que eu tinha. Ela falou que os médicos diziam que eu era normal. Era uma loucura, eles não sabiam como lidar comigo, eu era muito chorona e mole. Todo começo de ano não queriam que eu mudasse de turma, por que eu não acompanhava as outras crianças. Minha mãe exigia que ficasse com crianças de minha idade. Ela sempre acreditou que eu convivendo com pessoas da mesma idade eu ia ter referencia, passando a acompanhar meus amiguinhos e isso sempre aconteceu, embora mais lento.
Com isso, eu mesmo atrasada acabava aprendendo com meus amiguinhos. Minha mãe era tirada de mãe chata, ela nunca me tratou diferente. Ela sempre foi muito general, nunca me deixou ter privilégios, sempre exigiu que minhas dificuldades fossem respeitadas, mas que eu fosse tratada igual meus amiguinhos. Tanto que minha mãe me mudou duas vezes de creche, porque as tias estavam me mimando muito, e eu manipulava as tias.
Aos 5 anos, fui estudar na Escola Municipal de Educação Infantil, próxima de casa. Como sempre, chamaram meus pais no segundo dia de aula para perguntar o que eu tinha e avisaram que eles não estavam preparados para lidar comigo, queriam diminuir o meu horário escolar. Meus pais não concordaram. Falaram que sabiam que eu era diferente, mas como os médicos não haviam dado diagnóstico, eu era tratada como uma pessoa normal.
Nesta EMEI aconteceu de tudo. Eu ficava isolada no canto da sala de aula, todos os dias a professora reclamava que não sabia como trabalhar comigo. Eu ficava perambulando pela escola, me molhava no bebedouro, sumiam meus materiais escolares, eu não me integrava com a turma. O relacionamento da minha família com a escola piorou quando começaram a acontecer coisas desagradáveis como:
- Molhar toda a escola com uma mangueira que achei ligada.
- Desligar o quadro de força que achei aberto.
- Pintar uma parede que o pintor esqueceu de guardar as tintas.
- Tomar chuva durante 4 horas no playground da escola porque a professora me esqueceu. Como consequência acabei pegando uma pneumonia indo parar numa UTI.
- Apanhar todos os dias das outras crianças.
- Fugir da escola em horário de aula.
- Bilhetes mal educados da professora.
- Houve até boletins de ocorrência em delegacias.
Nesta época já se falava em SAPNE (sala de apoio pedagógico para pessoas com necessidades especiais). Eu frequentava pela manhã e ia para a EMEI à tarde. Era muito longe, tinha que atravessar a cidade, acordava de madrugada e estava sempre cansada e de mal humor.
Como eu já estava com 7 anos, meus pais resolveram entrar na justiça para conseguir uma escola adequada as minhas necessidades. Por falta de opção acabei indo estudar numa sala especial. Estudei lá por 3 anos, apesar de ter aprendido muita coisa, hoje sei que foi perda de tempo. A sala tinha 8 colegas com várias deficiências e eu acabava aprendendo as manias deles. Chorava para não ir, fugia da sala e ia para sala dos "ditos normais".
No segundo ano de sala especial, ia ter uma feira de ciência na escola e minha sala ia falar sobre o papel. A sala foi fazer uma visita a uma fábrica de papel. Neste dia minha mãe recebeu um bilhete da professora, que não havia prestado atenção e nem me interessei por nada. No dia da feira minha mãe me levou para a minha sala e a professora tinha feito uma maquete de todo o processo da fábrica. Aí entrou uma senhora e eu perguntei se ela queria uma explicação e expliquei tudo que haviam falado lá. Neste dia eu convenci minha família de que eu estava no lugar errado.
Embora minha família seja sem condição financeira, sempre tive acesso a todos os profissionais (fono, psicólogo, neuropsicologo, psicopedagoga, terapeuta ocupacional, músico terapeuta, psicomotrocista) necessários para o meu desenvolvimento, isto era possível porque minha mãe teve a cara-de-pau de ir a consultórios e pedir a possibilidade de me atenderem gratuitamente ou com pagamento simbólico, ou até mesmo fazer faxina no consultório para pagar as terapias.
Com este fato citado acima minha mãe relatou para eles e os mesmo se juntaram e me aplicaram vários testes. O resultado foi que eu estava acima daquela turma, era por isto que eu não prestava atenção em nada.
Naquela época já se falava em INCLUSÃO e orientaram a escola para me incluir na primeira série. A escola teve muita resistência em me incluir alegando que eu não estava preparada e no ano seguinte eu estava de novo na classe especial. Novamente no segundo dia de aula a professora falou que não estava preparada para lidar comigo. Neste dia minha mãe explodiu e falou tudo que pensava de um educador, falou coisas horríveis.
Minha mãe me levou para casa com a certeza de que nunca mais eu pisaria numa escola, mas graças a Deus a professora ligou à noite para minha mãe e pediu desculpas, disse que ela precisava ouvir tudo aquilo, disse também que estava muito envergonhada, falou do medo que ela sentia em relação a mim, e pediu ajuda para minha mãe. Isto fez muita diferença, as duas passaram a trabalhar juntas, falando a mesma língua; em 3 meses eu estava alfabetizada.
No ano seguinte fui "incluída". Vocês devem estar pensando que é um final feliz, pasmem, foi ai que começaram todos os meus pesadelos.
Fui "incluída" numa classe com 42 alunos, a professora recém formada com mais 2 hiperativos na sala. Eu ficava jogada no fundo da sala de aula, sumiam todos os meus materiais, apanhava dos colegas. A professora não me dava atividades, eu ficava passeando pelos corredores; era um pesadelo para todos. Minha mãe era proibida de entrar na escola. Quando ela ia falar com a direção, eles alegavam que a "inclusão" não tinha dado certo e eu tinha que voltar para a sala especial, mas minha família acreditava na minha capacidade, sabiam que eu não estava sendo atendida de maneira adequada.
Minha mãe continuava recebendo os bilhetes de reclamações. Um dia ligaram para minha mãe ir me buscar porque eu estava agressiva na sala. Reclamaram que eu tinha enfiado um lápis no ouvido de um colega, minha mãe foi muito preocupada porque eu sempre fui dócil e amável, minha mãe saiu comigo, sentou no banco da praça e me perguntou o por quê. Mostrei minha orelha toda ensanguentada e disse para ela:
- Ontem o colega puxou minha orelha até sangrar. Fui falar para a professora e ela falou: "Bem feito, quem mandou você mexer com ele?"
- Hoje eu fui me vingar.
- Ontem o colega puxou minha orelha até sangrar. Fui falar para a professora e ela falou: "Bem feito, quem mandou você mexer com ele?"
- Hoje eu fui me vingar.
Minha mãe chorou e voltamos na escola. Ela pediu para ver o livro de ocorrências e não tinha nada relatado do fato do dia anterior. Aí minha mãe exigiu que também constasse no livro o acontecido e o colega também recebesse advertência igual a mim.
Meus pais se sentiam constrangidos quando iam à reunião de pais. O assunto sempre era eu. Um dia minha mãe foi falar com a coordenadora pedagógica da escola e ela, muito impaciente, falou para a minha mãe que ela enchia o saco, quem era minha mãe para ensinar o serviço para ela, sendo que ela tinha 18 anos de pedagogia.
Neste dia minha mãe, cansada de tudo, saiu da escola e foi para o fórum, chegando lá pediu para falar com o juiz da vara do menor. Falaram que ele não a receberia, minha mãe deu uma de louca e ficou 4 horas sentada na porta dele. Quando começou a chegar a imprensa, o juiz a recebeu. Minha mãe explicou tudo que estava acontecendo e pediu uma autorização para eu ficar em casa sem estudar.
Inconformado, o Juiz pediu explicação para a secretária de Educação. A escola respondeu que minha mãe era omissa e eu não tinha atendimento - como já citei acima sempre tive todos os profissionais necessários para meu desenvolvimento. Aí minha mãe mostrou todos os laudos que tinha, o juiz viu que eles que eram omissos. Foi marcada uma reunião com todos os profissionais que me acompanhavam (19), conselhos e meus pais. Foram 4 horas de reunião e esclarecido tudo.
A escola foi reformada para se adequar as minhas necessidades, a direção afastada, todos se conscientizaram e passaram a respeitar minhas limitações. Também adaptaram o currículo escolar. Com esta intervenção, eu e meus colegas com deficiência tivemos um ganho muito grande. Acabaram as salas especiais e todos foram incluídos.
Estudei nesta escola até a terceira série, aí minha mãe acabou me tirando por conta da escola ser longe e eu tinha que tomar duas conduções para chegar. Fui estudar numa escola próxima de casa. No começo se assustaram porque eu fui a primeira com deficiência a estudar lá. Eu e minha mãe esclarecemos tudo e eu ensinei eles a lidarem comigo. Estudei lá por 2 anos.
Tive problemas na quinta série, primeiro queriam me dar atestado de terminalidade. Eu não queria parar de estudar, então minha família me matriculou numa escola pública muito famosa. Novamente voltamos a lutar, a escola funcionava com classes ambientes (o aluno vai até o professor). Nos intervalos eu me perdia e acabava estudando em sala errada. Eu ia todos os dias, mas ficava com falta.
Minha mãe tentou de todas as formas ajudar a escola, mas eles tinham muita resistência em ouvir minha mãe, até a professora da quarta série foi até a escola para ensiná-los a lidar comigo, mas nem isto adiantou. Na matemática sei fazer as 4 operações com material dourado, mas o professor de matemática não sabia usar este material. Não consigo copiar a lição da lousa com rapidez, o professor apagava antes de eu ter copiado. Só escrevo com letra de forma, o professor de português exigia que eu escrevesse com letra cursiva. Tentamos de todas as formas para eu permanecer na escola.
No final do ano, eu muito decepcionada e frustrada, decidi que ia parar de estudar. Minha família me aconselhava a não desistir. Minha mãe falava que acreditava em mim, que eu tinha potencial. Depois de muita insistência, minha mãe me falou do CIEJA (Centro Integrado de Educação de Jovens e adultos) e me pediu para eu ir conhecer. Lá fui muito bem recebida, me identifiquei muito com meus colegas com a minha idade. Estou estudando lá há 2 anos. O sistema educacional do CIEJA é por ciclos, cada um corresponde há duas séries escolares. Estou no terceiro, que corresponde à sétima série.
Quando tinha 11 anos, percebi que minha família estava me protegendo muito. Tinha uma moça que trabalhava em casa para cuidar de mim. Eu não saia sozinha, minha mãe ou meu pai me levavam para a escola e meus irmãos me buscavam. Eu sabia que eles faziam isto porque gostavam de mim, mas me sentia sufocada. Eu sempre tive a liberdade de falar tudo que penso em casa, sempre tive o direito à voz e voto como qualquer membro de minha família.
Um dia resolvi ter uma conversa séria com eles. Comecei perguntando se eles confiavam em mim. Todos disseram que sim. Aí eu questionei porque eu precisava de babá, porque eu não podia ir à padaria, na feira, sair sozinha, falei que não era mais um bebê. Foi como se eu tivesse jogado uma bomba em casa, uma revolução. Me pediram um tempo, vi minha mãe muito preocupada, afinal ela sempre esteve do meu lado. A primeira vez que me deixaram ir à padaria só, encontrei o meu vizinho na rua que me pegou na mão e me levou de volta para casa dizendo que eu estava fugindo. Minha mãe esclareceu que eu ia a padaria, ele chamou minha mãe de louca.
Uma vez estava esperando meu irmão num terminal de ônibus e o fiscal chamou a policia dizendo que eu estava perdida. Nem me perguntaram nada e me levaram para a delegacia. Aí chegou lá dei o endereço de casa e o telefone da minha mãe e ela foi lá me buscar.
O próximo passo foi me ensinar a ir só para a escola. Sei que não devo falar com estranhos, depois tiraram a babá. A primeira vez que fiquei só em casa cheguei muito atrasada na escola. Aí minha família percebeu a minha dificuldade com horário e minha mãe comprou vários despertadores coloridos para tocarem nos horários necessários, eu me guiava pelas cores. Hoje sei ver a hora no relógio digital.
Como tenho falta de coordenação motora, apertei muito o botão do microondas (uma hora) ao colocar um pão para descongelar e ele pegou fogo. Minha mãe descartou o micro e colocou Rabo Quente (uma boca de fogão elétrica). Nosso fogão tinha acendimento automático e girei vários botões, coloquei fogo no fogão. Minha mãe descartou o acendimento automático. Não uso o fogão porque não gosto de fósforos. Mas já estou aprendendo a usar o fogão e cozinhar, afinal um dia quero ter minha casa.
É muito engraçado, as pessoas ainda não estão acostumadas com a minha independência. Vivem me perguntando se estou perdida.
Sofri muitos preconceitos, nunca liguei para isto, aprendi a como lidar com isso. Quando tinha 5 anos reconheço que eu era um pouco esquisita: usava botas ortopédicas, tampão no olho, aparelho no dente e babava. Moramos num prédio, quando descia para brincar as crianças me mandavam embora. Como sempre ganhei muitos brinquedos da moda, eu descia com o brinquedo que eles não tinham e aí brincavam comigo. Com isto conquistei a todos. Na escola aprendi a conquistar meus colegas, temos que mostrar as nossas qualidades para as pessoas compreenderem que somos como qualquer pessoa e respeitarem nossa limitação.
Outro dia entrei no ônibus e quando me sentei ao lado de um senhor ele imediatamente se levantou, preferiu ir de pé. Aí eu perguntei para ele qual o preconceito que ele estava sentindo; só queria entender se era porque sou pobre, negra, mulher ou porque tenho deficiência. Ele ficou bravo e desceu no próximo ponto.
Já sofri tentativa de abuso sexual na escola, mas graças a Deus minha mãe sempre conversou sobre este assunto comigo e eu aprendi a identificar quando somos obrigados a fazer o que não queremos. Aí eu corri e denunciei eles para a direção da escola.
Quando estou sozinha não falo com ninguém e nem sento com homens no ônibus, pois uma vez eu sentei e ele colocou as mãos nas minhas pernas. Levantei e me mudei de lugar, me senti muito triste, liguei para minha mãe que me esperou no final com a polícia.
Quero casar com o Thiago e ter filhos. Dizem que meus filhos terão a SWB. Para mim não tem problema nenhum, tenho muito orgulho de ter SWB e daí se meus filhos tiverem, tenho certeza que eles serão pessoas maravilhosas.
Participo da Associação Brasileira de Síndrome de Williams, que minha mãe acabou se juntando com outras mães e fundando. Lá é muito legal, mas fico muito preocupada com meus amigos. Tenho alguns que tem a minha idade e suas mães ainda os tratam como bebês, outros que não conseguiram estudar, outros que a família não acredita no potencial deles, mas espero um dia mudar tudo isto e todos terem a mesma oportunidade que eu tive.
Tenho muitos amores: minha mãe, meu pai, meus 2 irmãos (maternos), minhas irmãs (paternas) e toda a família. Meus amigos, a coisa fofa da Pérola, e o meu amor Thiago. Estamos namorando desde o Natal, ele me faz muito feliz, ele também tem Síndrome de Williams e as nossas famílias dão o maior apoio.
Vou terminar dando um conselho para os pais de pessoas como eu: não mimem seus filhos, trate eles igual a qualquer filho, acredite em seu filho. Lembre: seu filho tem deficiência, mas não é incapaz.
Conselho para Professores: Quando você receber uma pessoa com qualquer deficiência, não tenha medo, não somos ETs, somos seres humanos iguais a vocês, não tenham medo de perguntar para nós ou nossas mães as suas dúvidas. Não somos um transtorno e sim pessoas que tem o direito de estudar como qualquer um.
Me magoa muito lembrar dos professores que não me aceitaram, mas de uma coisa eu tenho certeza: eles perderam a única oportunidade de morar no meu coração. Todas as pessoas que acreditaram em mim têm um lugar especial no meu coração.
Agradeço a minha Família, principalmente minha mãe que sempre lutou por mim, graças a ela hoje eu sou uma cidadã. Agradeço a todos que sempre acreditaram em mim.
Espero que minha história ajude muitas pessoas a vencerem o preconceito e melhorar a qualidade de vida, sendo INCLUÍDAS na sociedade.
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