Em uma pequena cidade do interior do país, as crianças estão reunidas em sala para a lição do bimestre: as primeiras letras. Algumas delas já conheceram em casa o alfabeto inteiro, outras se distraem com as conversas e brincadeiras, algumas não tiveram acesso à educação infantil e se esforçam para superar o tempo perdido. Muitas são negras e indígenas, outras são brancas; há as que têm o estojo cheio de canetas coloridas e também aquelas que não tinham nada para o café da manhã em casa. Entre elas está uma criança surda e outra com síndrome de Down. Todas são diferentes entre si, mas iguais em um aspecto: precisam aprender.
Ao incluir as pessoas com deficiência, a escola também se tornou um ambiente mais propício à aprendizagem. "Cada um de nós é único e não existe uma fórmula geral que funcione para todos. O ritmo de aprendizado é individual, seja de uma criança com deficiência ou não", destaca Rosângela Machado, gerente de educação inclusiva da rede municipal de Florianópolis (SC). "Quanto mais recursos a escola oferecer, menos limites as crianças terão."
A educação inclusiva se apoia na premissa de que é preciso olhar para o aluno de forma individualizada e colaborativa, contemplando suas habilidades e dificuldades no aprendizado em grupo. Isso não significa reduzir as expectativas da turma ou deixar de avaliar os estudantes: as metas de conquista do conhecimento são estabelecidas em consonância com o potencial de cada criança. "A escola deve ser um lugar de encontro, de igualdade, de desenvolvimento. Para isso precisamos construir um espaço-tempo de gestão que acolha as diferenças existentes no mundo", defende a pedagoga Carla Mauch, coordenadora-geral da associação Mais Diferenças, instituição que atua como consultoria na implementação de práticas e políticas inclusivas.
No Brasil, essa visão se consolidou com a criação, em 2008, da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Em cinco anos, de 2007 a 2012, o número de alunos com deficiência na escola regular passou de cerca de 306 mil para mais de 620 mil, um aumento de 102,78% (veja tabela). Diversas iniciativas do MEC têm auxiliado as redes públicas na tarefa de deixar para trás o modelo segregador que vigorava. Muito mais que recursos financeiros, a mudança depende de uma revisão de paradigma que ultrapassa as fronteiras da educação, dizendo respeito aos conceitos de inclusão da sociedade como um todo.
Caminhos livres
"A sociedade já deveria estar preparada para a diversidade. As necessidades das pessoas com deficiência são as mesmas de qualquer um: aprender, conviver, circular livremente", diz a educadora Ana Maria Barbosa, da Rede Saci, da Universidade de São Paulo (USP), que faz a difusão do tema por meio de cursos e plataforma on-line. A especialista lembra que não é necessário pensar em "adaptação" para a deficiência, e sim projetar ambientes e atividades que possam incluir qualquer pessoa.
Como fazer as mudanças estruturais e preparar a escola para a inclusão? Ela tem de estar pronta para receber os alunos com deficiência antes de eles chegarem ou devem esperar para descobrir suas necessidades? "Essa não pode ser uma questão Tostines", brinca Ana Maria. "É preciso haver condições para que essas crianças entrem na escola."
De acordo com os especialistas, a discussão sobre a acessibilidade em prédios públicos e privados é tão antiga que a maior parte das estruturas já deveria estar adequada. Essa questão, no entanto, ainda não está bem resolvida nas áreas de engenharia e arquitetura. Tanto é que muitas redes precisam buscar capacitação para os profissionais responsáveis pelas obras. "Não podemos ser complacentes com essa questão. As normas específicas para deficiência deveriam estar na formação inicial dos profissionais", defende Ana Maria. Ela ressalta ainda que as prefeituras devem colocar com clareza, em todos os editais, a atenção para com esse aspecto.
Para a responsável pela educação inclusiva em Florianópolis, é um mito pensar que a escola precisa antes se preparar para somente depois receber as crianças com deficiência. "Foi só quando trouxemos todas as crianças para nossa rede que percebemos quais as barreiras que existiam para que elas pudessem ter seu aprendizado garantido", conta Rosângela. A prefeitura detectou as necessidades da rede e fez uma parceria com o curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para conscientizar os profissionais sobre acessibilidade. "Os arquitetos e engenheiros se diziam despreparados para promover as mudanças."
Guarulhos também investiu na formação: em 2011, capacitou os estagiários de arquitetura da prefeitura e fez o levantamento do que precisaria ser feito nas escolas. "Conforme surgem os recursos, vamos fazendo as obras", conta a gerente técnica Marli dos Santos Siqueira. A eliminação de barreiras arquitetônicas é obrigatória independentemente da matrícula de estudantes com deficiência e tem o apoio financeiro do MEC. De 2008 a 2011, o Programa Escola Acessível contemplou 24.541 escolas, em 2012, 9.958. A meta, até 2014, é atender 57.541 escolas com recursos para promoção da acessibilidade física.
AEE
Segundo a legislação brasileira, são consideradas pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais de longo prazo que possam afetar sua participação na sociedade em igualdade de condições. O atendimento escolar é obrigatório a todos os estudantes de 4 a 17 anos, inclusive aos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento. Não existe um tipo de deficiência que exclua a criança de ser atendida pela escola em classe regular, sob pena de denúncia aos órgãos da Educação e ao Ministério Público.
A professora Rossana Ramos, da Universidade de Pernambuco (UPE), lembra que em algumas situações é preciso medidas prévias. "Casos em que os estudantes se mostrem altamente agressivos devem ser recomendados ao tratamento para que haja a inclusão." Marli Siqueira, da prefeitura de Guarulhos, diz que não há limite para deficiências na rede do município. "Só não recomendamos a matrícula caso a criança tenha a saúde muito debilitada, correndo o risco de ter sua situação agravada com o deslocamento."
Para o atendimento completo, a escola deve oferecer todas as condições a fim de que o aprendizado seja efetivo. A principal ferramenta para isso é o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que é considerado uma outra matrícula - recebendo recursos à parte do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) - e acontece no contraturno da classe regular. O AEE deve se articular à proposta pedagógica do ensino comum, utilizando as salas de recursos multifuncionais para organização de materiais que eliminem barreiras.
Não existe uma frequência ideal ao AEE para todos os alunos. Seguindo a lógica da diversidade, as prefeituras têm utilizado como método planos individuais de atendimento, que consideram as peculiaridades de cada criança para avaliar de qual apoio elas precisam para superar suas barreiras de aprendizagem. Há redes que promovem o AEE com frequência diária; outras trabalham com a média de dois a três turnos por semana. A relação dos professores de AEE com os docentes de classe regular deve ser garantida, pois disso depende o desenvolvimento da linha pedagógica.
"O professor de AEE e a coordenação pedagógica devem fazer a mediação do ensino. Na sala de aula, é preciso estabelecer um projeto colaborativo que dê conta de um grupo heterogêneo", explica Carla Mauch, da Mais Diferenças. Ela lembra que todas as crianças são diferentes entre si, e é preciso romper com o modelo homogêneo e a lógica de competição, reorganizando o tempo escolar em atividades diversificadas. "Hoje se trabalha principalmente na adaptação, mas o caminho é pensar em tarefas complementares, com desenho universal."
As salas de recursos são financiadas pelo MEC, a partir das demandas apresentadas pelas secretarias no Plano de Ações Articuladas (PAR). Na impossibilidade de implantar de imediato salas em todas as escolas do país, os municípios vêm estabelecendo escolas-polo, organizadas geograficamente, que recebem os alunos para o AEE. O ideal é que nem os profissionais nem o atendimento sejam segmentados por deficiência - o que continuaria incentivando a exclusão -, mas essa pode ser uma medida transitória enquanto se estruturam novos recursos.
Na classe regular também não há regras rígidas sobre tamanho das turmas ou proporção de crianças com deficiência por sala. A ideia é estar o mais próximo possível da representação da comunidade, sem segregação ou favoritismo. "Turmas muito numerosas não são proveitosas para ninguém, contudo o número de alunos não interfere na inclusão", explica Rossana. Ela salienta que o professor deve estar atento para casos em que o aluno precisa sentar próximo à lousa para enxergar melhor, ser ajudado na movimentação (o que pode ser feito pelos colegas) ou estar sempre de frente para o professor, no caso dos deficientes auditivos.
Formação na prática
Muitos professores tendem a resistir às mudanças por não se sentirem preparados. O problema começa já na formação inicial dos futuros docentes, pois muitos cursos não oferecem capacitação adequada para que se crie familiaridade com a questão. "Existe a ilusão de que há uma formação específica que diga como trabalhar com cada criança. Mas não é preciso ser especialista em deficiência para ser professor", lembra Rosângela.
"De que servem anos e anos de especialização sem a prática do dia a dia? O docente precisa ter sensibilidade, olhar não para a deficiência, e sim para a criança", defende Ana Maria Barbosa, da USP, apontando que as necessidades do aluno só serão compreendidas a partir do convívio com ele. A professora Anna Augusta Sampaio de Oliveira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), lembra ainda que o desenvolvimento de técnicas pedagógicas também se dá no contato direto. "Muitos métodos e recursos utilizados emergem do cotidiano de atendimento."
Diferentes iniciativas do MEC apoiam a formação de professores de AEE e dos demais profissionais das escolas com matrículas de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades ou superdotação. O Programa de Formação Continuada de Professores na Educação Especial ofereceu 76.800 vagas de cursos de especialização ou aperfeiçoamento entre 2007 a 2013. O censo escolar de 2012 registrou 88.244 professores da Educação Básica com formação continuada em educação especial.
Segundo a diretora de políticas de educação especial do MEC, Martinha Clarete, na perspectiva inclusiva, o professor da escola é o professor do estudante com e sem deficiência, então seria equivocado pressupor que faltam profissionais especializados - mas há, sim, um compromisso com a formação continuada. "Neste sentido cabe às redes ações e estratégias de formação, conforme demandas e realidades apresentadas."
Diversas iniciativas têm sido realizadas em convênio com universidades e associações, como é o caso do município alagoano de Arapiraca, que tem parceria com a Universidade Federal de Alagoas para o ensino de Libras. Em Poços de Caldas (MG), a capacitação dos professores acontece com cursos oferecidos pela secretaria municipal em conjunto com instituições como associações de pessoas com deficiência, AACD e Apae.
Resolução do Conselho Nacional de Educação define que, além do docente para o AEE, o aluno com deficiência pode ter necessidade dos serviços de tradução e interpretação de Libras, de guia-intérprete e de outros profissionais de apoio às atividades de alimentação, higiene e locomoção. Essa condição coloca no ambiente escolar um novo personagem, o auxiliar ou cuidador. "De acordo com sua realidade, cada sistema de ensino organiza e oferece esse serviço, ao identificar sua necessidade", diz Martinha.
Maria Helena Esteves, responsável pela área de Educação Inclusiva em Poços de Caldas, diz que há exigência de que o cuidador tenha o ensino médio, porém o município também possui profissionais como enfermeiras, professores, psicólogos e universitários desempenhando o papel. "Realizamos em junho de 2013 o primeiro concurso para auxiliar de educação inclusiva, 100 já foram chamados para exames admissionais e iniciarão suas atividades em 2014."
O papel do cuidador é de apoio e suporte, especialmente a crianças e adolescentes com deficiências mais graves ou múltiplas, gerindo aspectos como alimentação, medicação, fisioterapia, sondas e troca de fraldas. "Ele vai cuidar da saúde e do bem-estar da criança. Não se pode confundir com o papel do professor, pois sua atuação não é pedagógica", explica Anna Augusta.
Comunidade escolar
As experiências municipais têm demonstrado que o melhor caminho para efetivar a inclusão é incentivar o engajamento de toda a comunidade escolar. A articulação entre as secretarias e as entidades da sociedade civil muitas vezes também traz bons resultados.
Um importante grupo a ser envolvido na mudança de perspectiva é o dos familiares dos alunos com deficiência. "Os pais não têm ''''resistência'''' ao atendimento inclusivo, eles têm é receio de que seus filhos não sejam bem atendidos em razão da falta de estrutura", pontua Anna Augusta. Quanto mais grave for a deficiência, maior a preocupação da família, que em geral sofre com a falta de recursos adequados desde o nascimento da criança.
De norte a sul, o acolhimento e a aproximação das famílias, bem como a interação na comunidade, têm sido as melhores ferramentas para informar e dar segurança aos pais. Na capital catarinense, o apoio da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) local foi importante para essa integração. Já em Arapiraca (AL), para encontrar os alunos com deficiência, a secretaria de Educação faz busca ativa em parceria com a Assistência Social. "Muitas vezes, querendo proteger, as famílias acabavam por segregar os filhos. Para sensibilizar os pais, organizamos cursos de formação", conta a secretária Ana Valéria Peixoto.
A exclusão histórica de pessoas com deficiência é ainda um dos entraves a ser superado para a inclusão escolar. O medo e a desinformação fizeram com que várias crianças e jovens com deficiência nunca tenham frequentado a escola, o que, com as novas políticas de inclusão, tem ficado visível nos números de atendimento. Em 2007, 78.848 pessoas com deficiência, de 0 a 18 anos, cadastradas no Benefício de Prestação Continuada (bolsa de um salário mínimo para idosos ou pessoas com deficiência que não possam se manter nem ser mantidos por suas famílias) estavam matriculadas na escola - 21% do total de beneficiários dessa faixa etária. Em 2012, foram identificadas 329.801 matrículas, 70,16% deles. Até 2014, o MEC pretende alcançar 378.000 matrículas.
Na pequena Ipixuna do Pará, o caminho foi bater de porta em porta. "Nós íamos às casas em que sabíamos que havia pessoas com deficiência. Tínhamos de provar que éramos capazes de atender. É uma luta que se faz 24 horas por dia", diz a coordenadora de Educação Especial do município, Vilma de Almeida Anselmo. Hoje há famílias de cidades próximas que se mudam para Ipixuna buscando o atendimento, referência na região.
Outra possível barreira está nas próprias equipes das escolas, que podem temer que a presença de alunos com deficiência prejudique a qualidade do ensino. Nesses casos, vale trabalhar a formação de gestores, como fez a prefeitura de Guarulhos, e a informação dos profissionais, mostrando que a inclusão só traz benefícios. "Procuramos fazer a transição do atendimento de forma gradual, com discussões dentro das escolas, respeitando o processo histórico da rede", lembra a gerente técnica do município paulista.
Em Poços de Caldas, Maria Helena diz que a inclusão tem sido encarada como benéfica para as escolas. "Ela tem contribuído para tornar os estudantes mais receptivos, menos egoístas e bastante solidários." Ainda que seja possível encontrar algum preconceito entre os adolescentes, os colegas de aula são o menor dos desafios. As crianças costumam ter grande cuidado com os colegas, mostrando que às vezes é preciso aprender com a sabedoria infantil.
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Inclusão crescente
De 2007 a 2012, matrículas de alunos com deficiência nas classes regulares de escolas públicas do país dobraram. Em alguns estados aumento foi de quase 300%; taxas menores podem indicar inclusão anterior
Em cinco anos dobrou o número de alunos com deficiência matriculados nas
escolas regulares do país. A inclusão deve continuar a crescer e as redes
precisam estar prontas para receber bem esses estudantes com ações que
vão da melhoria dos espaços físicos à mobilização da comunidade escolar
Svendla Chaves
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